sexta-feira, 20 de abril de 2007

Céu de Maio

por Silvio Lourenço, em 30/4/2006


já desmaia
o céu de maio
silencioso e mais
íntimo se mostra
em um átimo de massa

a cor do céu
vislumbra vermelho
maquiagem cósmica
veste o vestido negro
vergado de luzes laminais

a medida desse céu
não se toma de metro
mas é tomada
pela música do
baile de marina

a luz desse céu
é de miçangas
piscam com as moças
e se espelham
nas poças

não chora o céu
maio seca a fonte
assola o lenho
resseca as ramas
ramais de fogo

machuca esse céu
lâmina amolada
amor amaro
música muda
discurso do não

céu de contradição

Amarelinha

por Silvio Lourenço, em setembro de 2005.

Tem céu,
tem também inferno.

A pedrinha,
lançada com fé
procura o céu
mas uma geografia perversa (parece que o Coisa-Ruim trama isso)
faz o inferno alargar
e por um largo pequeníssimo
cai o sortilégio
um pouco pra lá de onde deveria.

Aí a gente tem que pular
os pedaços marcados
coisas lindas e desejos gozosos
quedam ao lado.

Há uma pedra,
sim,
que a lançadeira tem por dever de obrigação recuperar.

O poema parece amarelinha
se jogar a palavra uma vez ou duas
longe do céu desejado, encanto não há.

Palavra-pedrinha,
o poeta tem fé que ela cumpra uma sorte,
se o poema não é de todo agrado,
pula o de que não goste,
lê só o desejado.

terça-feira, 27 de março de 2007

vaidade da vida (palíndromo)

por silvio lourenço, primavera de 2005.

a

asa

aviva

ovo novo

ave vai, ai, ave vá

a da nova pavonada

a vida deda diva

e

a diva deda vida

e

a vida deda diva

a da nova pavonada

ave vai, ai, ave vá

ovo novo

aviva

asa

a

terça-feira, 20 de março de 2007

Rosto oculto

por silvio lourenço, em fevereiro de 2006

Há muito se deseja
saber o seu rosto
não por amor,
nem devoção,
quem pouco faz de religião.

Atrai o mistério,
de lendas e histórias,
dispostas em memórias,
muitas cobertas de escórias,
e que até hoje esconde
a face incognoscível.

O que esconde também sublinha o objeto
e por frinchas e frestas
contornar agudas arestas
do que seja um desejo
de encontrar-se com algum ponto da verdade
desse rosto que sempre escapa.

A sombra

por silvio lourenço, em maio de 2006

A sombra
não erra a partitura,
apenas dissimula.

Cópia opaca
projeta escuridão
nada lhe escapa
cada gesto ou feição

e dança
às costas, de contra-mão,
a mesma dança de seu artesão.

Bushiana

por silvio lourenço, em 13/3/2007

Pensava-se dono do mundo
chegou botando seu olhar
sobre a rês confinada
acostumada à míngua,
que não abre a boca pra reclamar

Sabedor de forma e fundo
desfilou em livre avenida
do dia-a-dia congestionada
distante de protestos e revoltas
de combatentes combalidos na vida

Ínfimo em imenso descompasso
o barraco desmontado do ente
mãe-mulher catadora de papelão
exilada frente ao hotel palaciano
"Homem bom pode maltratar gente?"

Dele o poder definindo passos
no mais imenso canavial
esmagando planta, homem, mundo
combustível da grande massa
consumista do planeta trivial

quarta-feira, 7 de março de 2007

Breviário Noturno

por Silvio Lourenço, março de 2006

I

Morcegos mexem mandíbulas
no sótão
grincham de gozo


II

Paredes desbotam
pombas desbotam
pombos jamais
no desbotar do dia
botas batem nas ruas batidas: téqui-téqui-téqui-téqui
alguém corre a bater o cartão
o poeta bate letras olivetti

palavras desbotam


III

Não
e nada aqui
tendo o nada
nada tenho
longe amigos
a mente amola o longe

A memória é lata de lixo
melhor esvaziar que vira moléstia

mil voltas,
salto linhas...

De novo nadas


IV

A solidão noturna é forçada
grinchos de morcegos,
cantos de galos,
gritos de gatos,
arrulhos de pombos
são nós na noite
e nada nem coisa nenhuma se faz natural


V

Esqueço calças
rezo preces esquisitas
parecem guizos de cascavel

Escrevo novo apocalipse
crivado de lapsos
apoucado de símbolos

Aqueço e enxugo gelo
suco seco
o sol separa as noites

Pétalas de uma flor
pretas, pratas, lilases
fios tinturados nas faces

Duas moedas mínimas
dois cêntimos apenas
Deus deu o troco e ficou

O menino desenhando o alfabeto
as letras crescem
criam peixes e meninos

A máquina faz barulho
o aparelho do silêncio
está com defeito

Pílulas, papéis, problemas
passas secas ao sol
nos cabelos passa pente de osso

Pássaro poetando no ar
peixe poetando no mar
uma pedra partiu o poeta


VI

Exílio da noite – sol
exílio da solidão – vênus
exílio da flor – pedra
exílio do tempo – amanhã
exílio da alegria – perda
exílio da velhice – infância
exílio da humanidade – deus
exílio de mim – outro


VII

A moça tem uma boca
a boca da moça tem dentes
massageiam mensagens
musgadas


VIII

O amanhecer já é incógnita
cada aurora engana sua noite
nas frinchas se enfaixam feixes iluminados
as ruas são suas ruínas
as cirandas infantis tornam-se sérias
carros rangem de carroças
mercancias desinteressam
num castelo penitenciário
os condenados glosam poemas
como príncipes devaneiam

o mato meteu a morada oculta
suas pontas causam cócegas
nas portas


IX

Água de chuva fez suco de bosta de morcego
se acumula no assoalho
lagartixas brancas brecam velhas moscas verdes

Papéis na mesa e girassóis fora
palavras não penetram os papéis às vezes
então colemos palavras lisas


X

O tempo se tapou
nimbos são tampas
devolvem rios em gotas
bátegas escorrem azuladas na vidraça
retratam tipos post-mortem
surgem epitáfios
poemas de remorsos
pústulas mapeiam e adensam paredes da última morada


XI

Vênus vigia a avenida
transitam estrelas
na trilha cinzelada do caos
estrelas se caiaram de cinzas
Vênus se vê irritada
acende-se no cinza


XII

O pavio queimou inteiro
esqueçam o que se foi
esqueçam a casa
esqueçam a cama
esqueçam a criança
e o estado fetal

A aurora corrompeu a madrugada infensa
esqueçam a noite
esqueçam morangos
esqueçam seios nas mãos
esqueçam cantos
e lençóis

A chuva despediu-se da moça
esqueçam a arca
esqueçam os primatas
esqueçam o plâncton
esqueçam o sopro
e o barro

As imagens também se esfarelam
esqueçam suas flores
esqueçam suas pedras
esqueçam suas borboletas
esqueçam suas ilhas
até que a dor resgate nossas lembranças


XIII

Negaram o existir da natureza
busco imagens na própria ignorância
realizo pássaros que amamentam seus filhotes
meus sapos voam solenemente
ancorados em altos telhados
contemplam os girassóis azuis
no dia que o céu tingiu-se de verde
o mar amarelou-se de medo
e os peixes pescavam homens

Minha sopa tem gengivas brancas
e madeixas de medusa
despréstimos da ilusão

Os homens querem conhecer como árvores
arvoram ignorância por saber
árvores riem e roncam ao vento
murmurador
de nossos devaneios às anciãs silvestres
elas sabem coisas remotas
seus enigmas confundem
sua dor é imensa
dor é uma coisa de quem não se presta a morrer


XIV

Faltaram feições
ficou a frieza férrea
a feiúra a fenecer
um festim de facas

Essas facas cegas
ao tempo resistem
as noites cortam os dias
retalhando-os em lanços

Os perfumes das pétalas
pruridos ficaram
nas pisadas descalços
sangram os pés nos espinhos

As moças não sabem as danças
músicas moram maçantes
doces regalam velhas moscas
que no festim fitam as mesmas máscaras

FIM do breviário.



domingo, 25 de fevereiro de 2007

Menina da lata

por Silvio Lourenço, em 31/03/2006


Na mesma e sempre dura hora,
nunca se demora,
madrugadora,
a filha de Dora, agora,
barriga de fora, mãos ainda suaves e um olhar onde explode tristeza
e esconde sua vertiginosa beleza,
na vida ingrata vem catando lata numa luta tola.
Natália cata latinha
pra mais tarde comê farinha
e meia salsicha se sobrar.
Vem batendo latinha com latinha,
de coca, guaraná.
Seu saco negro é um grande chocalho,
balaio de tensões intraduzíveis:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá,
balançando lentamente o barulho de lata amassada,
alumínio mínimo da vida que passa,
que amassa
latinha
e amassa
Natália, a menina.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Jazzinho I e II

por Silvio Lourenço, em 18/02/2007

I

Esperança que se dá
a quem espera
de ser quem o ser já era

O jazz desperta
a quem insone
chama-o por qualquer nome

Se atende só
podia atendê-lo
se não era passou a sê-lo


II

O jazz tanto
O poema quanto
Um sonho.

A canção composta
O acorde resposta
Um ganho.

O jazz alegre
O riso da plebe
Empenho.

A partitura
A dor capitula
Engenho.

Se não fosse sonho
Nem houvesse ganho
De partida.

Nesse empenho
Negaria o engenho
Seria a vida.

Pendente

por Silvio Lourenço, em 14/02/2007


A correntinha
deitou sobre meu pulso
com o peso da cruz pendente
e o súplice olhar
de quem a vendia.

Suplicância
oculta pelo ray-ban
mas viva em sua voz
é a mesma simulada
no cruzeiro pendente.

O cristo marcado
mercado de sua cruz
a ilusão dos desejos
os desejos de ilusão
todos pendentes então.

Se quase comprei a corrente
mercado ficou pendente.